terça-feira, 3 de julho de 2012

Economismo que devora o homem



Espanha: cardeal Cañizares debate com o ex-primeiro-ministro Rodríguez Zapatero
ÁVILA, terça-feira, 2 de julho de 2012 (ZENIT.org) - Um dos acontecimentos recentes mais chamativos do debate nacional espanhol foi o encontro entre o cardeal Antonio Cañizares, prefeito da Congregação vaticana para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos, e o ex-presidente do governo, José Luis Rodríguez Zapatero. O debate aconteceu no auditório do Palácio de Congressos de Ávila, que estava lotado. Enquanto a blogosfera expressava em 140 caracteres por segundo o seu assombro diante de duas pessoas aparentemente tão díspares compartilhando a mesa, o cardeal e o ex-primeiro-ministro puseram nela os grandes temas que afetam atualmente a sociedade espanhola.
Cañizares não poderia ter sido mais claro: “Vamos dialogar sobre o humanismo do século XXI, sobre uma humanidade nova e renovada”. E apresentou as suas famosas “divisões encouraçadas”, mencionadas por Stalin quando ironizava sobre o pouco poderio militar do Vaticano. “Cañizares, como São Pedro, não tem nem ouro nem prata, nem força, nem poder. Oferece o testemunho da verdade que recebeu”, disse o religioso, apresentando suas credenciais.

Rodríguez Zapatero foi fiel ao seu discurso político: “A palavra é a fonte principal do humanismo, o ideal mais alto, e está presente em todas as culturas e religiões”. Mas a pessoa com quem ele estava debatendo não era apenas um alto representante da cúria vaticana, e sim um homem religioso que acredita que a sociedade não deve ser secularizada a todo custo. Zapatero reconheceu que, com Cañizares, tinha “consolidado uma relação de ideias diferentes, mas sempre repleta de um respeito que caminhou para o afeto”.
É conhecido o “otimismo antropológico” com que Zapatero defende o seu projeto, segundo o qual, por maior que seja a crise econômica, a crise moral, por mais abandono que as pessoas padeçam na selva financeira, vivemos no melhor dos mundos possíveis, se o compararmos com outros períodos históricos. Mas Cañizares lançou à mistura uma dose de realidade: “Um economicismo exacerbado quer devorar o homem”. E para evitar que o otimismo acabe em eufórica cegueira, perguntou: “Para onde vai a Europa?”. E acrescentou: “Não podemos progredir sem a verdade, com um relativismo tão terrível como este que nos esmaga e que comanda a economia”.
O auditório do Palácio de Congressos de Ávila estava repleto: mais de duas mil pessoas escutavam com atenção e um murmúrio tenso se espalhava quando Zapatero terminava as suas intervenções. Havia aplausos apaixonados. E tensão: era a primeira aparição pública do ex-presidente, cujos governos aprovaram leis que levaram a comunidade católica espanhola a protestar. O fato de Zapatero ter escolhido um fórum católico para se pronunciar permite muitas interpretações.
Talvez ele buscasse a reconciliação com um setor da sociedade que lhe dera as costas. Zapatero afirmou: “Seria ignorante não reconhecer que a Europa teve dois mil anos de cristianismo, que exerceram uma influência evidente. Não enxergá-lo seria ignorância”.
Quando o cardeal Cañizares falava dos valores cristãos, da solidariedade, do espírito comunitário, da ajuda ao próximo, do respeito pela vida, de salvaguardar a dignidade dos homens, Zapatero falava da Declaração dos Direitos do Homem, dos estados democráticos, de ajuda humanitária, da constituição espanhola, cujo artigo 16 preserva as crenças religiosas. Ambos concordaram que não existe democracia sem os valores do humanismo.
Zapatero lembrou o debate que o cardeal Joseph Ratzinger travou em 2004 com o filósofo alemão Jünger Habermas. Aquele encontro “estabeleceu um modelo de respeito, de neutralidade do Estado e de aprendizagem mútua através do diálogo”. Sem dúvida, foi um debate que marcou época, mesmo tendo sido bastante ignorado na Espanha e em muitos outros países.
Como modelo de diálogo, Cañizares colocou o encontro de Bento XVI em Assis com representantes de outras religiões. Essa valentia foi reivindicada pelo cardeal. Por sua vez, Zapatero compartilhou esta opinião e qualificou o encontro de Assis em outubro de 2011 como “a mais audaz doutrina de Bento XVI”. Não pôde evitar a referência a uma das suas propostas mais emblemáticas de governo ao abordar o “diálogo inter-religioso e o diálogo de civilizações”.
Diálogo, diálogo, diálogo... O diálogo implica a renúncia às próprias ideias? Diálogo para que? Com que objetivo? “Isto é um exemplo de diálogo”, disse o cardeal. “Nunca devemos fechar as portas para ninguém. O diálogo verdadeiro só pode trazer bens para a sociedade. O diálogo, que é tolerância, não é relativismo, mas fidelidade às ideias de grandeza”. Zapatero compartilhou também esta opinião. “O diálogo sincero facilita o sossego, alimenta a reflexão e o progresso”.
Mas foi Cañizares quem expressou de maneira clara o pano de fundo deste debate sobre o humanismo no século XXI, um tempo de crise profunda, quando afirmou: “Não existe democracia sem consciência assentada nos princípios que diferenciam o bem e o mal”. Zapatero completou: “A democracia é a consciência”.
Cañizares pediu um futuro mais ambicioso, muito mais que o pragmatismo imposto pelos líderes políticos. “Não seria demais pedir que algum dirigente econômico lesse a encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI”, para entender que se governa para os homens. “Temos que sonhar com o futuro. Faltam sonhadores, faltam Quixotes”.

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