segunda-feira, 6 de maio de 2013

Sobre os binários de um Inter City


Sobre os binários de um Inter City[1]
ou
Assédio à moda africana
(Antenor de Andrade)

Manhã feita de gelo. O InterCity resfolegava veloz e decididamente sobre os trilhos que uniam Veneza a Milão. O frio inclemente martirizava o corpo. Sozinho  no compartimento de seis poltronas, mantinha a janela e porta  fechadas. O percurso entre as duas cidades pode ser feito de 02h35 a 03h25, variando conforme a velocidade do trem.
Os campos cultivados da planície padana[2] eram uma alegria para os olhos curiosos de quem ama apaixonadamente a Natureza. Devassava ansiosa e apaixonadamente aquelas paisagens, enquanto o barulho troante das rodas sobre os trilhos me traziam desejos de viajar também em minha terra naquelas modernas composições.  Pobre Nordeste brasileiro! Quem dera que um dia...e não estivesse tão longe...
Uma das  coisas que mais admirei em meus anos de Europa foi o quase perfeito sistema viário do Continente. Incluo nesta observação não apenas as ferrovias e rodovias, mas também o transporte nas águas do Mediterrâneo ou sobre o Canal da Mancha. As travessias realizadas entre Calai na França ou partindo da Holanda em direção a  Dover, no Sudeste da Inglaterra são exageradamente cronometradas para quem não está habituado à rigidez dos horários. Sempre gostei de seguí-los.
Dover com seus paredões escarpados[3] lembravam-me Canoa Quebrada ao Sul de Fortaleza, Barreira do Inferno no litoral meridional do Rio Grande do Norte, ou as ribanceiras íngremes e perigosas de Ponta de Seixas na minha Paraíba. Retornemos à nossa cabine. Por pouco tempo fui o único a ocupar uma de suas poltronas. Embarquei na Estação de Mester (Veneza) e alguns minutos depois, em Pádua, passei a ser acompanhado.Tratava-se de três  inquilinas de peso, originárias de Bostswana, país do Sudeste africano. Suas cores de ébano e seus corpos artisticamente esculpidos lembravam estátuas de alguns Museus ou Logradouros que eu havia visitado.
Ao adentrarem na  cabine, carregadas de bolsas e marmitas, senti um odor forte que me invadiu nariz e olhos, deixando-me meio tonto. Veio-me à mente cenas dos farofeiros. Encostado na janela ergui-me rápido e levantei parcialmente o vidro que bloqueava o vento gélido, cuja força era alimentada pela velocidade da composição.   
Ao voltar-me para sentar, senti inesperada e indesejadamente um dedo indicador pressionar meu rosto a partir do nariz. A rapidez com que a mulher me abordou, quase me deixou inerte, sem ação. No entanto, dei-lhe  um safanão quase derrubando-a sobre a poltrona.
“I did`nt like it”, retruquei. Não gostei, disse-lhe seca e decididamente. As companheiras, ainda arrumando as bagagens, olharam-nos num misto de surpresa e desaprovação. Não entendi de que lado estavam. Conversaram entre si num idioma totalmente estranho e sentaram-se.
A massagista irreverente, vestindo um gins esbranquiçado e modorrento,   acomodou-se ao meu lado, estirando as pernas sobre a poltrona em frente, ocupada pela colega que, quase deitada e na mesma posição também bloqueava minha saída. Ambas olhavam-se de frente. Fiquei preso, refém das duas. Se  quisesse sair de meu lugar teria que passar sobre dois pares de pernas femininas, arriscando-me a não sei que.
Felizmente aquela situação não demorou muito. Talvez lhes faltasse exercício físico para aquele tipo de alongamento.
A terceira moça sentou diante de mim. Jovem, linda, rosto arredondado, lembrando uma nipônica e sofrido. Um tanto além do peso. Percebi que era diferente das demais. Falava um italiano meio bárbaro, mas nos entendíamos. Informou-me que eram naturais da África e trabalhavam como prostitutas em Veneza. Isso eu já suspeitara. Na época encontravam-se frequentemente,  não só nas cidades européias, mas nas estradas, mulheres africanas, asiáticas, latino americanas e da Europa Central. Vivia-se o pós desmembramento da união Soviética.
Sentia  ainda insistente o aroma da mão asquerosa e acatingada que me havia tocado o rosto. Depois que soube ao certo que se tratava de uma profissional do sexo tive ânsias de vômito. Os clientes de Veneza não deviam ter o sentido do olfato. Talvez se explique a escassez dos mesmos e por isso aquelas coitadas se retiravam para Milão. A que me atacara era a chefe do grupo.
Houve um momento em que as duas mais escoladas sentaram-se no piso do trem, abriram uma panela de alumínio, cujo angu avermelhado exalava um forte odor apimentado.
As duas  iniciavam o almoço usando como garfo as próprias mãos. Ainda não haviam terminado quando entra em nossa cabine o fiscal. Olhando insatisfeito para elas disse-lhes que não sujassem o carro. A protagonista dessa história olhou-o furiosa e disse algo que não entendi. Seu aspecto rancoroso e olhos de predador frustrado pareciam querer destruir o funcionário da ferrovia. Fiquei atento, aguardando alguma outra surpresa. Minha situação ali era delicada e eu rezava a São Benedito pedindo que logo chegássemos a Milão.
Enquanto nosso bólide deslizava meio louco sobre os binários vencendo as distâncias, eu me refazia do odor nauseante do manjar estranho daquela marmita. Aproveitava, no entanto para curtir as ricas cidades e as campinas de cabeleiras ondeantes que atapetavam graciosamente aqueles rincões do Norte  da Península itálica. Inesquecível as cumeadas onduladas e esbranquiçadas dos Alpes à nossa direita.
Finalmente Milão, a grande e rica metrópole Capital da Lombardia. Senti um alivio, era o ponto final para aquelas desventuradas. A moça triste de olhos sonolentos me fez um aceno e desceu os degraus do Inter City. Rapidamente todas se perderam no meio da multidão que se acotovelava na estação da orgulhosa megalópole milanesa. Pensei em mudar de poltrona, mas poderia receber uma multa se o fiscal me encontrasse em um assento que não era o meu.
Esse foi mais um episódio vivido sobre os binários das ferrovias italianas.




        



[1] TREM QUE LIGA AS CIDADES EUROPÉIAS.
[2] Planície do Pó, rio com 652km que irriga o Norte da Itália, passando pelo Piemonte, Lombardia e Vêneto.
[3] Veja “Dover” no Google. A foto que tirei do barco que me conduzia a Londres, perdeu-se.

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