ou
Assédio à moda
africana
(Antenor de Andrade)
Manhã feita de gelo. O InterCity
resfolegava veloz e decididamente sobre os trilhos que uniam Veneza a Milão. O
frio inclemente martirizava o corpo. Sozinho no compartimento de seis poltronas, mantinha a janela e
porta fechadas. O percurso entre
as duas cidades pode ser feito de 02h35 a 03h25, variando conforme a velocidade
do trem.
Os campos cultivados da
planície padana[2] eram uma
alegria para os olhos curiosos de quem ama apaixonadamente a Natureza.
Devassava ansiosa e apaixonadamente aquelas paisagens, enquanto o barulho
troante das rodas sobre os trilhos me traziam desejos de viajar também em minha
terra naquelas modernas composições.
Pobre Nordeste brasileiro! Quem dera que um dia...e não estivesse tão
longe...
Uma das coisas que mais admirei em meus anos de
Europa foi o quase perfeito sistema viário do Continente. Incluo nesta
observação não apenas as ferrovias e rodovias, mas também o transporte nas
águas do Mediterrâneo ou sobre o Canal da Mancha. As travessias realizadas
entre Calai na França ou partindo da Holanda em direção a Dover, no Sudeste da Inglaterra são
exageradamente cronometradas para quem não está habituado à rigidez dos
horários. Sempre gostei de seguí-los.
Dover com seus paredões escarpados[3]
lembravam-me Canoa Quebrada ao Sul de Fortaleza, Barreira do Inferno no litoral
meridional do Rio Grande do Norte, ou as ribanceiras íngremes e perigosas de
Ponta de Seixas na minha Paraíba. Retornemos à nossa cabine. Por pouco tempo
fui o único a ocupar uma de suas poltronas. Embarquei na Estação de Mester
(Veneza) e alguns minutos depois, em Pádua, passei a ser acompanhado.Tratava-se
de três inquilinas de peso,
originárias de Bostswana, país do Sudeste africano. Suas cores de ébano e seus
corpos artisticamente esculpidos lembravam estátuas de alguns Museus ou
Logradouros que eu havia visitado.
Ao adentrarem na cabine, carregadas de bolsas e marmitas,
senti um odor forte que me invadiu nariz e olhos, deixando-me meio tonto. Veio-me
à mente cenas dos farofeiros. Encostado na janela ergui-me rápido e levantei
parcialmente o vidro que bloqueava o vento gélido, cuja força era alimentada
pela velocidade da composição.
Ao voltar-me para sentar,
senti inesperada e indesejadamente um dedo indicador pressionar meu rosto a
partir do nariz. A rapidez com que a mulher me abordou, quase me deixou inerte,
sem ação. No entanto, dei-lhe um
safanão quase derrubando-a sobre a poltrona.
“I did`nt like it”, retruquei. Não gostei, disse-lhe seca e decididamente. As companheiras,
ainda arrumando as bagagens, olharam-nos num misto de surpresa e desaprovação. Não
entendi de que lado estavam. Conversaram entre si num idioma totalmente
estranho e sentaram-se.
A massagista irreverente,
vestindo um gins esbranquiçado e modorrento, acomodou-se ao meu lado, estirando as pernas sobre a poltrona
em frente, ocupada pela colega que, quase deitada e na mesma posição também
bloqueava minha saída. Ambas olhavam-se de frente. Fiquei preso, refém das
duas. Se quisesse sair de meu
lugar teria que passar sobre dois pares de pernas femininas, arriscando-me a
não sei que.
Felizmente aquela situação
não demorou muito. Talvez lhes faltasse exercício físico para aquele tipo de
alongamento.
A terceira moça sentou diante
de mim. Jovem, linda, rosto arredondado, lembrando uma nipônica e sofrido. Um
tanto além do peso. Percebi que era diferente das demais. Falava um italiano meio
bárbaro, mas nos entendíamos. Informou-me que eram naturais da África e
trabalhavam como prostitutas em Veneza. Isso eu já suspeitara. Na época
encontravam-se frequentemente, não
só nas cidades européias, mas nas estradas, mulheres africanas, asiáticas,
latino americanas e da Europa Central. Vivia-se o pós desmembramento da união
Soviética.
Sentia ainda insistente o aroma da mão
asquerosa e acatingada que me havia tocado o rosto. Depois que soube ao certo
que se tratava de uma profissional do sexo tive ânsias de vômito. Os clientes de
Veneza não deviam ter o sentido do olfato. Talvez se explique a escassez dos
mesmos e por isso aquelas coitadas se retiravam para Milão. A que me atacara
era a chefe do grupo.
Houve um momento em que as
duas mais escoladas sentaram-se no piso do trem, abriram uma panela de
alumínio, cujo angu avermelhado exalava um forte odor apimentado.
As duas iniciavam o almoço usando como garfo as
próprias mãos. Ainda não haviam terminado quando entra em nossa cabine o
fiscal. Olhando insatisfeito para elas disse-lhes que não sujassem o carro. A
protagonista dessa história olhou-o furiosa e disse algo que não entendi. Seu
aspecto rancoroso e olhos de predador frustrado pareciam querer destruir o
funcionário da ferrovia. Fiquei atento, aguardando alguma outra surpresa. Minha
situação ali era delicada e eu rezava a São Benedito pedindo que logo
chegássemos a Milão.
Enquanto nosso bólide deslizava
meio louco sobre os binários vencendo as distâncias, eu me refazia do odor
nauseante do manjar estranho daquela marmita. Aproveitava, no entanto para
curtir as ricas cidades e as campinas de cabeleiras ondeantes que atapetavam
graciosamente aqueles rincões do Norte
da Península itálica. Inesquecível as cumeadas onduladas e
esbranquiçadas dos Alpes à nossa direita.
Finalmente Milão, a grande e
rica metrópole Capital da Lombardia. Senti um alivio, era o ponto final para
aquelas desventuradas. A moça triste de olhos sonolentos me fez um aceno e
desceu os degraus do Inter City. Rapidamente todas se perderam no meio da
multidão que se acotovelava na estação da orgulhosa megalópole milanesa. Pensei
em mudar de poltrona, mas poderia receber uma multa se o fiscal me encontrasse
em um assento que não era o meu.
Esse foi mais um episódio
vivido sobre os binários das ferrovias italianas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário