Por Rodolfo Papa*
ROMA, domingo, 3 de julho de 2011 (ZENIT.org) - Em reflexões anteriores, reconstruímos algumas raízes e efeitos da iconofobia contemporânea, estudando as suas surpreendentes relações com a arte sacra cristã, nos termos da prevalência do texto escrito sobre a imagem, inclusive o texto publicitário, e do equívoco entre imagem fotográfica e imagem artística.
Considero oportuno, agora, abrir um parêntese de sociologia da arte e da estética sobre uma questão capital: a corporeidade. Afinal, a iconofobia também significa o abandono, ou até o desprezo, do corpo.
Gostaria de falar em particular sobre um texto escrito por um crítico francês contemporâneo, que escreve de um ponto de vista não católico: A imagem aberta. Motivos da encarnação nas artes visuais, de Georges Didi-Huberman.
Didi-Huberman propõe uma análise das relações antropológicas cruciais que as imagens têm com o corpo e a carne, além das noções usuais de antropomorfismo ou das representações figurativas. Ele escreve: “Diante de imagens, ficamos como diante de coisas estranhas, que se abrem e se fecham alternativamente para os nossos sentidos; entendendo por esse termo um fato da sensação ou do significado, ou um resultado de um ato sensível ou de uma faculdade inteligível. Aqui, achamos que ele tenha a ver com uma imagem familiar, mas de repente ela se fecha para nós e se torna inacessível por excelência. Experimentamos a imagem como um obstáculo insuperável, uma opacidade sem fundo, quando, de improviso, ela se abre à nossa frente e parece querer nos engolir. As imagens nos abraçam: elas se abrem para nós e se fecham sobre nós, à medida que suscitam em nós o que podemos chamar de experiência interior”. [1]
Através dessa “abertura”, dá-se a possibilidade de lerem-se as imagens no contexto do paganismo, assim como no do cristianismo. No caso do paganismo, Didi-Huberman encara a relação entre a imagem desenhada ou esculpida e a carne, no caso do semblante da carne de Afrodite formada pela espuma do mar; descobre assim uma dimensão metafórica no mundo antigo, algo que consegue representar ao mesmo tempo o mito e a corporeidade da existência entendida em seu mistério mágico. “O nascimento de Afrodite, aliás, ou o nascimento da própria Beleza, é contado como um drama metafórico a partir de uma matéria abjeta: a espuma lhe dá forma”. [2]
Segundo Didi-Huberman, o cristianismo, no entanto, procura superar os limites da imitação e entra em estreito contato com os sinais que se tornam sintomas, e a carne mesma se torna imagem, “porque a carne é indestrutível. É uma correlação incrível, como diz Tertuliano da loucura da Encarnação. O Verbo se encarna para que Jesus se sacrifique, para que Jesus morra; mas Jesus morre apenas para ressuscitar; e ressuscita apenas para salvar a humanidade, dando, com o milagre da ressurreição, a figura -a profecia, a “norma”, a lei (lex)- da ressurreição final de que toda carne se beneficiará. Entre as noções do Verbo divino feito carne e a noção da carne humana destinada a ressuscitar, Tertuliano estabelecerá quase uma relação de equação teológica; em todo caso, uma relação de implicação necessária. Se o Verbo se fez carne para salvar o homem, é porque queria salvar a carne do homem arrependido”. [3]
Didi-Huberman chega assim a descobrir uma relação imprescindível entre o corpo e a imagem, uma relação entre o sentido supremo da Encarnação e a possibilidade da sua representação como adesão não só externa, mas através de uma fé “encarnada” na vida, interior e espiritual.
Didi-Huberman, através do percurso hermenêutico do texto apologético de Tertuliano, chega a compreender o sentido da experiência mística dos estigmas de São Francisco de Assis, restituída pela leitura da Vita prima de Tomás de Celano, em que, na descrição dos pregos impressos nas suas mãos e pés em contraste com o candor do Encarnado, afirma-se que tais sinais de martírio não produziam horror, mas dignidade e beleza. “Neste sentido, a relação com a imagem que o estigma envolve é o contrário de uma relação de espelho. O que é estigmatizado não imita Cristo no sentido de um “jogo de espelhos”: sua posição identificadora é fundamentalmente diferente. Ela tenta, como se disse, exceder a imagem com a imagem e na imagem; reproduzir o mistério de uma íntima conversão sintomática. Não há de surpreender-nos o fato de que esta característica da imago, diferente do speculum, foi obviada por muitos exegetas textuais, profundamente pensada e elaborada no trabalho da pintura, dado que os pintores não deixam de despregar a heurística do próprio elemento da identificação estigmatizante, ou seja, o visual e a sua eficácia. Assim, a relação de São Francisco com a imagem de Cristo na cruz, desde o século XIII, se apresenta frequentemente como uma relação de incorporação”. [4]
Esclareça-se que na experiência espiritual e mística do cristianismo é possível rastrear ao menos uma parte, não secundária, da constituição de um sistema artístico complexo e realizado, capaz de representar in imagine picta o sentido próprio da fé em Cristo.
Escreve ainda Didi-Huberman: “Em geral, o culto ao sangue de Cristo, a partir do século XIII até o início da idade barroca, parece estar no mesmo nível de uma colocação não da Gestalt, mas da Gestaltung. Quer dizer: Como nascem as figuras? Qual é a sua causa não só 'formal', mas também -e principalmente- material?”. [5]
Didi-Huberman provê, portanto, a partir do exterior, de um ponto de vista desde o qual observar a longa história da arte cristã, centrada no corpo, na Encarnação, as modalidades onde se entrelaçam a carne e a imagem.
A iconofobia que infectou a arte sacra a fez ficar doente de incorporeidade. E resulta, segundo minha opinião, surpreendente que os próprios católicos se tenham deixado subtrair a importância da imagem do corpo, a importância do corpo representado. Por que aconteceu tal abandono? A pergunta se nos impõe não só pela via sociológica e cultural, para cujas perguntas Didi-Huberman pode, talvez, ajudar-nos a encontrar as respostas, mas também é-nos colocada por via teológica, litúrgica, espiritual. A pergunta é difícil e exige uma resposta global que percorra mais âmbitos disciplinares: por que a iconofobia converteu-se na (não) linguagem contemporânea da arte cristã, sendo incapaz de oferecer o centro, a essência, a origem e o fim de todo discurso -e não só artístico- cristão, quer dizer, o corpo de Cristo”.
Notas originais em italiano:
1) G. Didi-Huberman, L’immagine aperta. Motivi dell’incarnazione nelle arti visive [2007] trad. it Milano, 2008, pag. 1
2) Ivi, pag 41.
3) Ivi, pag. 90
4) Ivi, pp. 115-116.
5) Ivi, pag. 117.
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* Rodolfo Papa é historiador de arte, professor de história das teorias estéticas na Universidade Urbaniana, em Roma e presidente da ‘Accademia Urbana delle Arti'; pintor, autor de ciclos pictóricos de arte sacra em várias basílicas e catedrais; especialista em Leonardo Da Vinci e Caravaggio, além de autor de livros e colaborador de revistas.
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