Salmo 136. Comentário (um pouco longo)

Meditação exegética do Salmo 136 - "Super flumina Babylonis illic sedimus et flevimus". Este salmo está diferente do que esperava? Há dois sistemas de numeração dos salmos, o da Septuagésima (ou grega) seguida pela Vulgata, e o Massorético (ou hebraico). Nesta catequese se segue a antiga e tradicional numeração cristã da Septuagésima. Se sua Bíblia está numerada diferente, então procure seu texto no Salmo 135. 

1. Às margens dos rios de Babilônia, nos assentávamos chorando, lembrando-nos de Sião.

Ah, Super flumina Babylonis illic sedimus et flevimus... Tenho uma versão em polifônico de Palestrina, é de rasgar o coração. Eu mesmo tenho vontade de me sentar no chão com a cabeça entre as mãos e chorar com saudades de Sião que nunca vi. Este Salmo faz um paralelo com o Salmo 125 e recomendo sua leitura em seguida. O 136 retrata o exílio, mas o 125 é a volta exultante dos exilados.

O 136 é um dos mais conhecidos. Até o livro de História do Sérgio Buarque de Holanda o cita para retratar o exílio. É uma peça literária incrível, a melancolia e a tristeza que cada palavra inspira. É de uma tristeza tocante e concentrada. Outros livros da Bíblia falam da tristeza do Exílio. As Lamentações e Jeremias falam da perspectiva dos que ficaram e vêem a terra arrasada. Tobias, Ezequiel, Baruc e Daniel falam daqueles que foram exilados. O 136 é um cânticos dos exilados, peça de rara beleza.

2. Nos salgueiros daquela terra, pendurávamos, então, as nossas harpas,

Um bom amigo narra que estando em Santiago, as margens do Rio Mapuche, no "Parque das Esculturas" em Providência, encontrou um salgueiro Salix Babylonica (clique na imagem ao lado para ampliar). É fato que o Rio Mapuche não era o Eufrates, porém não dava para sentir saudades de Sião, já que Santiago era cercada de montanhas, e outro salmo diz Tal e qual Jerusalém, toda cercada de montanhas. Perguntei se havia muitas pessoas sentando e chorando as margens do Rio sob o salgueiro, ao que ele respondeu que não, o parque era muito frequentado por casais, aliás rindo gostosamente... toda cidade grande é uma Babilônia, e poderia ser que aqueles que estivessem lá rindo talvez mais tarde chorassem amargamente também.

É interessante porque este salmo, esmagado em sua tristeza, quase não cita Deus, só no seu final em uma imprecação. É a melancolia. A desesperança. A aridez espiritual. Deus distante. Intelectualmente sabemos que Deus está próximo, mais perto de nós que nós mesmos. Porém quem pode orar direito quando nossas faculdades estão turvas pela tristeza, esmagadas pela solidão e desesperança?

É por isso que a esperança é uma virtude teologal. Porque vem por inspiração sobrenatural. Esperar contra toda a esperança, já dizia São Paulo. Os exilados estavam em Babilônia, Israel disperso e destruído, as promessas de bençãos do Êxodo suplantadas pela maldição causada pelo pecado. Só restava a esperanca. Não é à toa que foi no Exílio da Babilônia que quase todo o Antigo Testamento foi compilado.

A virtude da esperança responde à aspiração de felicidade colocada por Deus no coração de todo homem; assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens; purifica-as, para ordená-las ao Reino dos Céus; protege contra o desânimo; dá alento em todo esmorecimento; dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O impulso da esperança preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade.

Catecismo da Igreja Católica, 1818

As margens dos rios da Babilônia da vida, a humanidade só vê o desespero a sua frente. É apenas a ajuda do Espírito Santo que acende em nós a esperança. Curioso, não? Falamos tanto em esperança no dia a dia, mas é um conceito religioso...

3. porque aqueles que nos tinham deportado pediam-nos um cântico. Nossos opressores exigiam de nós um hino de alegria: Cantai-nos um dos cânticos de Sião.
4. Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor em terra estranha?
5. Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise!
6. Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias.

Há indícios, baseado em evidências de Jeremias, que sem a burocracia real em Jerusalém a situação dos camponeses da Palestina até melhorou, mas é difícil separar estes comentários da infecção dos preconceitos campesinos da Teologia da Libertação. Na época do Exílio, o reino de Judá era em grande parte "cultural e psiquicamente" Jerusalém e seu templo. Havia uma grande confiança no Templo e na dinastia de Davi, especialmente depois do milagre que devastou o exército assírio invasor no tempo de Ezequias. Profetas como Jeremias e Ezequiel tentavam quebrar esse paradigma, Deus entregaria até mesmo o Templo nas mãos do invasor para punir os pecados do povo.

Eu não sei quem ficou pior na época da invasão babilônica. Nabucodonosor fez duas ondas de exílio, muito simplificadamente, na primeira levou a nobreza, na segunda os artesãos. Ficaram os pobres e camponeses. De acordo com Ezequiel, os que havia escapado do primeiro exílio se sentiam com sorte, mal sabendo que punição pior os aguardava quando da revolta do rei-marionete Sedecias e da destruição de Jerusalém quando do cerco de Jerusalém e toda a destruição do saque. Leiam as Lamentações para compreenderem a grandeza da devastação.

Babilônia, a grande cidade. Já fiquei sozinho em grandes Babilônias. É uma experiência esmagadora, estar cercado por tanta gente e estar só. Sacerdotes sem templo, nobres sem o trono de Davi, povo sem terra, só tinham as escrituras para examinar e tentar atinar com o que deu errado. A resposta é a chamada História Deuteronômica, o conjunto telogicamente uniforme de livros que vai do Deuteronômio até Reis. O que deu errado? A idolatria de Israel. Nós, cristãos, podemos achar distante e esquisito a tendência israelita de adorar ídolos porque o politeísmo acabou no Ocidente. Porém temos que ler essa idolatria como o pecado. Sim, não adoramos mais Astarte nem Baal nem Moloc, mas adoramos a Astarte dos pecados carnais, o Baal da cobiça pelo dinheiro, o Moloc que devora crianças em nome de um falso progresso científico.

7. Contra os filhos de Edom, lembrai-vos, Senhor, do dia da queda de Jerusalém, quando eles gritavam: Arrasai-a, arrasai-a até os seus alicerces!
8. Ó filha de Babilônia, a devastadora, feliz aquele que te retribuir o mal que nos fizeste!
9. Feliz aquele que se apoderar de teus filhinhos, para os esmagar contra o rochedo!

Pronto. Estavámos elogiando a beleza e a poesia quando de repende temos estes versículos tenebrosos. Não é algo que se coloque na liturgia da missa...

Os edomitas eram os descendentes de Esaú. Quando do ataque final dos babilônios à Jerusalém, os edomitas participaram do saque contra o povo irmão da casa de Jacó. O profeta Abdias é eloqüênte em vaticinar o castigo divino contra Edom pelo oportunismo. Estar no salmo mostra o sentimento de revolta da época contra a traição edomita.

Esmagar crianças? Ora, um semitismo da época. Vamos ler alegoriocamente. Aproveitando-se da imagem do Apocalipe, se a prostituta Babilônia é o Mal que traz a taça do pecado nas mãos, as crianças são as sementes do Mal. Devemos esmagá-las contra o rochedo mesmo. Rochedo que é Cristo, do qual Moisés em Meriba fez jorrar as águas que prefiguram o batismo. Rochedo esse que á a fé cristã. Rochedo também é Pedro e sua Igreja, corpo místico de Cristo, instrumento do sacramento da Penitência para a reconciliação do batizado com Deus.

Portanto, quando brotar em nós uma criança do Mal, de nossa concupiscência, atiremo-na contra o Rochedo. E o salmista ainda diz "Feliz!". Feliz quem luta contra suas más inclinações no nascedouro.